quinta-feira, 10 de julho de 2014

Grande Guerra - Pt 2

Parece que os bons e maus ventos estavam a nosso favor, conseguimos fazer o que nenhum outro ser conseguira antes. O último a tentar esse feito havia sido Mammon. Parece que não se passou nem um dia sequer desde que parti.
Subimos até o topo do castelo, agora tínhamos que sair do purgatório e marchar para o paraíso para depor aquele deus tirano. Mas algo nos surpreendeu, no topo da torre havia uma criança, é incrível como não consigo lembrar do seu semblante, nem de sua voz, aliás não me lembro de nenhuma característica dela.
- Levem-me convosco cavaleiros, sei que irão realizar um grande feito, não lhes incomodarei – disse a criança.
Eu e o anjo íamos de pronto negar, mas Abigor astuto como todo demônio nos repreendeu com o olhar, e se abaixando disse suavemente para a criancinha:
- Doce criança, de certo eu adorarei sua companhia poderá ir conosco e nossa lindíssima guerreira poderá cuidar de você no caminho, mas apenas até a terra. Contudo não sabemos onde fica a saída desse “mundo”, você que parece há muito vive aqui saberia nos informar onde fica a saída, sei que ela é famosa aqui…
Não havia pensado nisso, sabíamos do que precisávamos, mas não onde encontrar. Não tínhamos planos bem fundamentados, a Entidade que nos guiou disse-nos apenas que nos encontraríamos, mas nunca lutamos juntos antes dessa aventura. Com certeza se a criança nos ajudasse nos pouparia muito tempo.
- É claro que sei onde é, toda alma que foi banida pra cá já tentou abrir aquelas portas. Eu lhes ajudarei desde que me levem junto.
- Acordo fechado - disse o demônio estendendo a mão para a criança. A criança, então, tocou de leve a mão de Abigor e correu para perto de mim.
- Vamos logo, temos um deus para matar – disse eu pegando a criança pela a mão, com um instinto quase materno.
Seguindo a criança caminhamos por entre as almas banidas rumo ao “Portal dos Mundos”.
O Corvo


quarta-feira, 9 de julho de 2014

Grande Guerra - pt. 1

Cheiro de morte era o que eu sentia nos campos naquele momento. Um anjo pairava sobre um corpo que ainda convulsionava enquanto um demônio se alimentava da carne ainda fresca do cadáver logo ao lado.

Abutres voavam por sobre a campina, mas nenhum se atreveu descer enquanto essas criaturas ainda estavam ali.

Não entendia bem o que o anjo queria ali, estava na verdade terminando de matar o soldado que convulsionava. Como sempre não esboçava sentimento.

Era um cenário único, e antes que o sol tocasse as montanhas a leste pôde-se ouvir a primeira nota seca de um tambor. Os abutres começaram a queimar nos céus e cair como pequenos meteoros, o anjo terminou de arrancar a cabeça do soldado usando apenas os pés e olhou para o demônio, esse terminou de engolir o coração morto que estava em sua boca e sorriu para o anjo.

Dessa vez uma batida dupla cortou os ares, pareciam muito mais altas que a primeira, já começava a incomodar os ouvidos.

Eu ainda estava lá, imóvel sobre o cavalo, a respiração do animal se intensificava, mas fora o movimento causado pelo diafragma ele se mantinha imóvel.

O anjo de cabelos castanhos como a terra então se afastou do demônio, eram gritantes suas diferenças: O anjo era alto e musculoso, tinha a pele bronseada, não tinha nada cobrindo seu corpo assexuado, seus olhos eram castanhos muito claros e seus dentes eram brancos e pontiagudos, suas costas estavam tampadas pelo enorme par de asas totalmente tingidas com o vermelho do sangue derramado em combate; O demônio era muito menor, praticamente metade da estatura do ser celeste, tinha a pele desbotada coberta por cicatrizes e imperfeições, sua cabeça sem pelos era coberta por milhares de verrugas, os ossos estavam todos salientes, pois eram cobertos só pela pele asquerosa, não tinha olhos e suas órbitas vazias estavam contaminadas com uma secreção purulenta.
As nuvens carregadas começaram a se juntar, como que numa dança profana, sobe a pouca luz – ironicamente – pude “ver” melhor o rosto do demônio que tinha quatro chifres, era Abigor. O arcanjo eu não reconheci é incrivelmente difícil guardar suas feições.

Quando a tempestade se intensificou as três batidas soaram. Era a hora.

Saltei do cavalo e ele disparou rumo às montanhas antes que eu caísse no chão. Meus longos cabelos pretos se misturavam com a cor da noite, e contrastavam com minha pele branca como o gelo, minha túnica quase transparente deixava meu corpo bem destacado, meus seios arrepiados com o frio daquela noite deixariam qualquer mortal excitado, mas nem Abigor nem o Arcanjo pareciam me notar.

Quando cheguei próximo daqueles seres místicos é que vi, o demônio que parecia minúsculo era na verdade cerca de 10 centímetros maior do que eu, o anjo começou a diminuir até ficar do meu tamanho, na sua forma real e só então pareceu me perceber.

Meu suor frio escorria pela minha espinha e pegando um na mão do outro fizemos nosso cântico. Uma cratera se abriu e sombras emanaram rumo ao céu, e a luz da lua por entre as nuvens que se afastaram do feixe de sombras assumiu uma tonalidade azulada.

Os mortos ao nosso redor se ergueram e se agruparam formando uma muralha de cadáveres ao redor da cratera. Misticamente o sangue começou a escorrer dos corpos os deixando com um aspecto mumificado. O anjo começou então a cantar em língua de anjo, e isso fez com que os corpos se retorcessem criando uma passagem pequena pela qual atravessamos.

Estávamos lá, e o som de milhares de alma clamando por perdão encheu os ares, o chão estava coberto por cerca de 30cm de água que não corria para nenhum lugar, abaixo do espelho d’água podia-se ver o brilho distante de chamas,  não podia ser outro lugar se não o inferno logo ali abaixo. olhando para cima ficou claro que era o lugar certo pois podia-se ver o limite do infinito, e a mistura de cores era com certeza vinda dos paraíso. Estávamos no purgatório.

Podia-se ouvir tão distantes quanto os lamentos um canto suave, era encantador uma voz mais linda do que a de qualquer anjo.

- O canto dela é capaz de atrair até mesmo a mim - disse o demônio com uma voz infantil.

O arcanjo olhou para cima, seus sentimentos eram inescrutáveis, se é que ele era capaz de sentir.
Um enxame de almas veio em nossa direção, violentas elas gritavam:

- Uriel, amaldiçoado seja você Uriel!

Abigor ria da situação enquanto o Arcanjo Uriel (agora eu sabia quem era) usava sua espada divina para retaliar as almas enlouquecidas. Eu ainda tremia de medo quando presenciava tais cenas, mesmo tendo sido criada para isso. O demônio com uma voz doce disse enquanto me deslizava as mãos profanas por minhas nádegas nuas:

- Acalme-se Virgem, não deixarei que o mal lhe aconteça, irei te tomar para mim quando tudo acabar.

Afastei-me então para o lado e esbofeteei aquela face infernal o que lhe causou um sorriso torto. Uriel cortando a última alma se juntou a nós e prosseguimos a passos largos.

Não sabia se aquele local era frio ou se era quente, úmido ou seco, sagrado ou profano, eu apenas queria que acabasse logo.

Chegamos então ao local onde não tinha mais água, e que já se podia ouvir mais intensamente os lamentos… e o canto. Almas de homens vinham até mim implorar pelo meu perdão, mas parecia apenas um pretexto para tocarem meu corpo despido. Não haveria perdão. já podíamos ver a torre de cristal que é onde estaria nosso alvo.

A caminhada até os portões da torre parecia ter durado séculos, mas lá estávamos com mil almas nos implorando piedade. O demônio tocou a porta de cristal e disse “Quod Ignis Infernalis” e uma chama explodiu a passagem, que se reconstruiu logo que saltamos para dentro.

Era assustadoramente limpo e organizado, um banquete estava servido à mesa, com taças de cristal e talheres em aço celestial, uma lareira estava acesa com um fogo negro e passos descompassados poderiam ser ouvidos enquanto um mordomo impecavelmente bem vestido caminhava em nossa direção, ao me ver nua que estava ele apenas disse “Ao pecado não me renderei”. Suas vestes não condiziam com sua aparência, apesar de ter fisionomia humana parecia possuir mais de mil anos, sua pele era enrugada e manchada pelo tempo, os poucos fios de cabelo que tinha eram brancos, mas possuía todos os dentes em ótimo estado.

O som da voz feminina que cantava era mais claro dentro da fortaleza e isso apenas ressaltava a beleza daquela voz. O mordomo disse olhando para além de nós “não esperávamos visitantes, o que significa que não são bem vindos… e que a menos que me deem um bom motivos irão morrer aqui mesmo”, no mesmo instante que disse isso seus olhos mudaram de tom rapidamente assumindo um vermelho incandescente e toda a torre tremeu, como num terremoto.

“Viemos buscar aquela que canta para as almas chorosas do purgatório” disse o anjo sem mover os lábios. O velho então olhou para os lados, e dando um passo a frente tocou a face do anjo com as duas mãos espalmadas, o rosto do anjo começou a queimar, e seu corpo começou a murchar como uma folha envelhecendo. Eu tive que intervir chegando por traz do velhote tampei seus olhos, a essa altura os gritos de dor do anjo eram insuportáveis, percebi que Abigor desenhava símbolos satânicos no chão, com uma grande pressa. Terminando a magia apenas beijei a cabeça do mordomo, saltei então para longe dele que caiu no chão em espasmos e sangrando pelos olhos, seu sangue era incrivelmente espesso.

O anjo cambaleava numa forma horrenda, foi quando cortei a palma da mão e lhe dei meu sangue, e ele começou a se recompor. Em poucos segundos o velho já parara de convulsionar, ele era forte, um humano ficaria meses nesse estado com a quantidade de energia que forneci. O demônio então saltou por sobre mim e de dentro do círculo místico que ele desenhara saltou um cérberus, com um bafo fétido que tornaria qualquer um incapaz de respirar.

O velho virou-se de frente para o animal de três cabeças e urrou para ele, o animal em resposta bateu pesadamente com as patas no chão e grunhiu num tom grave. A pele do mordomo então criou escamas seu nariz se tornou um focinho de um réptil, e em menos de três segundos ele se tornou um dragão humanoide. Abrindo a boca esguichou do fundo da garganta um liquido escuro, que facilmente corroeu a pele do cão do inferno matando-o em menos de 10 segundos.
Espantados restou-nos uma única alternativa: unirmos-nos. Sem pronunciar uma palavra cada um fez o que sabia que devia. Espremi um pouco mais de sangue do corte em minha mão e despejei nas mãos do demônio enquanto o anjo lhe entregou a espada. Se não fosse o sangue de uma virgem cobrindo as mãos de Abigor ele se incendiaria em fogo celeste ao tocar a arma e provavelmente morreria.

Enquanto fizemos o breve rito, o dragão começou a ingerir o corpo do cérberus e duplicou de tamanho. O anjo assumiu sua forma etérea e entrou na espada no mesmo momento em que o dragão saltou por sobre Abigor que se esquivou com um ágil movimento para o lado. Quando bateu no chão o dragão girou no momento exato de espalmar a lâmina encantada antes que ela lhe atingisse o pescoço.

Só agora, pude perceber que o canto havia parado, mas não pude pensar nisso, já que o dragão lançou uma explosão de chamas da qual tive que me proteger atrás de um pilar. Abigor não fugiu das chamas, na verdade ele se alimentava delas, e com o corpo incendiado ele correu para o dragão e num movimento preciso atravessou lhe o peito. O golpe fez com que o velho mordomo-dragão se transformasse em pedra e com uma pequena explosão de luz o anjo saiu da espada destroçando-o por completo.

Subimos as escadarias o mais rápido que pudemos, e quando chegamos ao seu final vimos uma mulher sorrindo, e com sua voz doce ela nos disse: “A profecia se cumpriu!”. Nesse instante Uriel já tirava de dentro de seu corpo o pergaminho com o encantamento pronto, a mulher se ajoelhou no chão e deixando uma lágrima rolar ela se curvou para nós.

Entoamos o cântico em uníssono e vimos a alma daquela que cantava para as almas do purgatório ser arrancada de seu corpo e possuir a espada celestial. Estávamos esgotados e incrédulos, deu tudo certo. Agora tínhamos tudo que precisávamos para depor o reinado de Deus, e assim seria.

O Corvo